Terras indígenas e direitos originarios: os interesses por trás da tese do marco temporal

Em entrevista à Radio Città Aperta de Roma, o presidente do CIMI e Arcebispo de Porto Velho, Dom Roque Paloschi, denuncia a situação dos povos indígenas no Brasil e comenta o caso de repercussão geral a ser julgado pelo STF e que definirá o futuro das terras indígenas no país

De Thais Palermo Buti

Após 22 anos de espera, povo Yanomami comemora a desocupação dos fazendeiros da Terra Indígena na região de Ajarani em Roraima, no último dia 31 de maio. Foto: Mário Vilela / Funai

Quando falamos de direitos indígenas, falamos do direito à terra. Por isso a decisão do Supremo Tribunal Federal, que deverá julgar o Recurso Extraordinário 1.017.365 relativo a reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra a demarcação da Terra Indígena Ibirama-Laklanõ é tão importante. O caso foi reconhecido como tendo repercussão geral e, portanto, o que for decidido ali será válido para todas as futuras demarcações.

O julgamento, inicialmente marcado para o dia 28 de outubro, foi adiado para data indefinida. Um verdadeiro golpe para as lideranças, organizações e movimentos que vinham se mobilitando há meses para a histórica decisão. A adiação representa uma vitória do governo Bolsonaro, pois coincide com a entrada no Supremo Tribunal Federal do ministro Kassio Nunes, notoriamente contrário à defesa dos direitos originários. Nunes tomou posse no dia 05 de novembro, em substituição do ministro Celso de Mello, que se aposentou. Assim, aumentam os riscos de que a linha governativa – alinhada com a tese do “marco temporal”, que sujeita o reconhecimento dos direitos à presença física dos povos em suas terras em outubro de 1988 – seja aprovada.

Caso passe a posição defendida pelo governo, que é a mesma dos ruralistas e de todos aqueles que se beneficiam da depredação e da espoliação das terras indígenas, poderíamos assistir a um verdadeiro “derramamento de sangue”, nas palavras de Dom Roque Paloschi, presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e Arcebispo de Porto Velho, em entrevista concedida à Radio Città Aperta de Roma. Para Dom Roque, o que está por trás do caso de repercussão geral é uma tentativa evidente de desrespeitar a Constituição Federal de 1988 para facilitar a exploração das terras amazônicas, onde se concentra a grande maioria dos povos indígenas, e que vem sendo “ocupadas, loteadas, depredadas, envenenadas”, para fins de exploração comercial – desde madeireiros e garimpeiros, até os grandes projetos do agronegócio e da mineiração.

Habitantes das terras ameríndias há milênios, os povos indígenas latino-americanos vivem, desde a invasão do Século XV pelos europeus, uma “história de sofrimento, humilhação e desrespeito”, afirma Dom Roque. Razão pela qual o Estado brasileiro, através da Constituição de 1988, assumiu o compromisso de “pagar essa dívida histórica em relação aos povos originários, reconhecendo suas terras tradicionais”. E agora, mais uma vez, o próprio Estado vira às costas aos povos indígenas, que lutam para preservar a ideia do indigenato, instituição jurídica luso-brasileira que remonta à época colonial, e que foi reconhecida pelos dispositivos constitucionais de 1988.

O indigenato, tratando-se de direito congênito – diferente portanto da ocupação, que é um direito adquirido – é legítimo por si mesmo, não dependendo de legitimação. Daí a argumentação sofista dos defensores do marco temporal, que pretendem vincular os direitos congênitos dos povos indígenas a circunstâncias de caráter espaço-temporal, como a presença desses povos, no dia em que foi promulgada a Constituição, nas terras que reivindicam. “Que somente tenham direito às terras tradicionais os povos que estavam ali em 5 de outubro de 1988 é muito desigual”, denuncia Dom Roque. Por um simples motivo: “até então os povos indígenas eram tutelados. Eles eram levados de um lugar para o outro a bel prazer, primeiro do Serviço de Proteção Indígena (SPI), e depois da FUNAI, criada em 1967 pelo regime militar.

Para o presidente do CIMI, o comportamento do Estado em relação aos povos indígenas como também aos afrodescendentes é a prova de que “o Brasil é um país preconceituoso, racista, discriminatório, que historicamente nega o direito dos pobres, e não consegue entender que os direitos são direitos. E os direitos originários, o direito natural, o direito constitucional, devem ser respeitados”. Neste quadro geral de fragilidade para os povos originários, com o governo atual “estamos retrocedendo à ditadura militar”, afirma Dom Roque, que denuncia um aumento preocupante da violência nas terras indígenas e do assassinato de lideranças, e da atuação indevida de órgãos públicos, como a FUNAI, no reconhecimento de propriedades privadas dentro das terras que deveriam ser protegidas. O exemplo mais emblemático da violência a que estão sujeitos os indígenas do Brasil é o do povo Guarani kaiowá. Os recorrentes episódios de violência no Mato Grosso do Sul, onde vivem, fizeram com que o local ficasse conhecido como a Faixa de Gaza brasileira, na definição do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro.

O caminho para a autodeterminação a que os povos indígenas tem direito é tortuoso, afirma Dom Roque. Por isso, principalmente neste momento de violência institucional em relação às populações mais fragilizadas, revelam-se de grande importância as diferentes alianças, dentro e fora do Brasil, que os movimentos e organizações indígenas tem conseguido criar. São espaços de diálogo, de construção de pontes e de visibilidade, que podem apoiar os povos originários a verem reconhecidos, depois de tanta luta, os direitos que sempre lhes pertenceram.

Entrevista completa com Dom Roque Paloschi em portugues