As eleições nos EUA acabaram. Agora começamos a analisar os dados e a comparar as previsões com a realidade. E se os jovens aparecem como os grandes arautos do anti-trumpismo, às mulheres coube o trabalho árduo e constante de construir e manter os andaimes que levaram o Partido Democrata à vitória.
De Thais Palermo Buti
Agora que nos livramos de Donald Trump, pelo meno pelos próximos quatro anos, podemos começar a analisar com mais tranquilidade as previsões feitas para as eleições nos Estados Unidos e compará-las com a realidade. Nem todas as projeções se tornaram realidade, a começar pela grande vantagem que era dada a Biden – projeções mostravam um mínimo de 8% – em relação a Trump. E até que a contagem total não se conclua, o que dará aos analistas políticos e especialistas mais elementos para entender o comportamento do eleitorado, devemos confiar nas opiniões dos estudiosos.
Aquilo de que se tem certeza é que mais de 150 milhões de eleitores compareceram às urnas, marcando a maior participação popular às eleições em mais de um século. Cerca de 76 milhões de estadounidensdes votaram em Joe Biden, enquanto o futuro ex presidente (que ele goste ou não) obteve aproximadamente 70 milhões de votos. Mas quem são esses eleitores? Que grupos eles representam, em termos demográficos?
Por enquanto, alguns especialistas argumentam que certas tendências gerais entre aqueles que votaram nos dois candidatos são evidentes. Mas ao que parece, uma das grandes expectativas, aquela de um “gender gap” nunca visto antes – com as mulheres que votariam em massa no democrata – não se concretizou. No entanto, se apenas as mulheres tivessem votado, Trump teria perdido por uma margem ainda maior. Charles H. Stewart, professor de ciência política e fundador do Laboratório de Dados e Ciências do MIT, em entrevista ao jornal britânico Guardian, afirma que houve uma “ligeira ampliação” do voto feminino, com 56% das mulheres que teriam votado em Biden contra 43% em Trump. As projeções haviam indicado que esta diferença poderia chegar até un 23%, o que parece não ter ocorrido. Por outro lado, entre os homens, os dois candidatos estariam praticamente empatados.
Nem mesmo o eleitorado mais velho teria mudado muito em relação a 2016. “Ao contrário de algumas projeções, as pesquisas de boca de urna não mostram um ‘êxodo dramático’ de Trump (à Biden, ndr) entre as pessoas mais velhas“, disse Stewart. Um total de 51% dos maiores de 65 anos teria votado em Trump nas últimas eleições, enquanto que em 2016 os números alcançaram 52%. Na análise do professor do MIT, a grande evidência que surge de uma primeira análise é o papel dos jovens nessas eleições, que teriam sido os verdadeiros arautos do anti-trumpismo.
Ao lado das análises baseadas em gênero e idade, há também aquelas com um recorte racial. Em âmbito nacional, Trump teria recebido cerca de 57% dos votos dos brancos – embora com grandes variações por estado, ligadas a fatores como educação e idade. Ao contrário, afro-americanos, latino-americanos e asiáticos teriam votado massiçamente em Joe Biden, afirma o professor de ciências políticas da Universidade da Califórnia, Louis DeSipio. Seguindo os resultados desta análise, pode-se dizer que o comportamento de cubanos e venezuelanos na Flórida – que desempenharam um papel crucial na vitória de Trump no estado – não representaria a tendência do eleitor latino-americano, permanecendo um fator isolado. Para DeSipio, de qualquer modo, a escolha dessa parte do eleitorado ‘latino’ marca um “retorno ao campo republicano“, após uma crescente virada para os democratas, a partir de 1996. Um comportamento, argumenta o professor, “interessante e que vai requer um pouco de atenção”.
Outro recorte que emerge na análise do eleitorado é aquela do nível de escolaridade. Para a diretora do Centro de Informação e Pesquisa sobre Aprendizagem e Engajamento Cívico (Circle) da Tufts University, Kei Kawashima-Ginsberg, os jovens mais instruídos votaram em Biden. Segundo dados analisados por Kawashima, entre os eleitores jovens, apenas aqueles da zona rural ou residentes em cidades pequenas, e que em sua maioria não cursaram a faculdade, preferiram o republicano: 51% contra 46% que votaram em Biden. Por outro lado, entre os jovens graduados residentes nas mesmas áreas, Biden venceu com 52% ante os 44% obtidos por Trump.
Em relação ao recorte da renda familiar, o republicano teria obtido mais votos entre os eleitores que ganham mais de 100.000 dólares por ano. Se trata, para alguns analistas, da “maior variação demográfica” verificada, e que se deveria aos cortes de impostos e às medidas de desregulamentação aprovadas por Trump, que beneficiam principalmente os ricos. Ao que parece, para estes eleitores, as guerras ideológicas, os debates sobre o futuro do país no tabuleiro mundial, e as medidas de contenção contra a pandemia de coronavirus contam pouco; o que vale realmente è o dinheiro que conseguem – ou não – acumular.
O papel das mulheres na vitória de Joe Biden
Como noticiado pela Folha de São Paulo, durante a sua campanha eleitoral, Trump se dirigiu às mulheres de duas maneiras bastante exageradas. Em alguns casos, ele adotou o tom de um namorado que pede uma chance. “Por favor, mulheres do subúrbio, vocês deveriam me amar“, chegou a dizer em um comício na Flórida. Em outros, agiu agressivamente contra as suas adversárias. Em um evento no Michigan, em 17 de outubro, Trump criticou a governadora do estado, a democrata Gretchen Whitmer. Em seguida, seus apoiadores gritaram “prendam-na“, que ele endossou com um “prendam todos eles“. Dias antes, o FBI tinha detido dois grupos de homens acusados de elaborar um plano para sequestrar a governadora.
Ainda não sabemos se e em que medida as táticas de Trump o ajudaram a atrair as eleitoras. As pesquisas mostravam uma rejeição crescente por parte do eleitorado feminino em relação ao republicano, uma tendência que pode ter-lhe custado a reeleição. De acordo com algumas pesquisas pré-eleitorais, a vantagem de Joe Biden variava de 14% (Economist / YouGov) a 23% (New York Times / Siena College), passando por um intermediário 19% segundo levantamento da Fox News – canal historicamente republicano e alinhado com Trump. De acordo com uma pesquisa do Pew Research Center, a vantagem do democrata era ainda mais esmagadora, se consideradas somente as eleitoras latino-americanas e afro-americanas: respectivamente 44 e 85 pontos percentuais à frente do republicano.
Embora tenhamos que esperar para entender onde Trump conseguiu alavancar o eleitorado feminino, o fato é que a preferência das mulheres pelo partido democrata tem crescido gradativamente, principalmente após algumas mudanças na plataforma republicana, a partir dos anos 80. O partido tem defendido cada vez mais a proibição do aborto e retirou o apoio a muitas medidas para promover a igualdade de gênero, especialmente durante o governo de Ronald Reagan.
Tatiana Teixeira, pesquisadora do INCT-INEU (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA), afirma que a reiterada tentativa de revogar o “Obamacare” (Affordable Care Act) e de limitar o acesso das mulheres a serviços de saúde como o controle de natalidade e o pré-natal, tem sido indicado por organizações e movimentos sociais como uma “ameaça a conquistas estabelecidas”, o que teria feito a diferença na escolha do candidato por parte das mulheres.
Trump concentrou sua campanha nas mulheres brancas de classe média, a quem chamou genericamente de “donas de casa”. É verdade que as mulheres brancas o ajudaram a vencer em 2016, mas as eleições de meio de mandato de 2018 mostraram que estava em curso uma mudança de tendência. Na ocasião, 59% das mulheres graduadas votaram nos democratas (contra 49% em 2016). Não é por acaso, portanto, que Trump tem procurado aumentar o consenso entre as mulheres evangélicas e menos escolarizadas, que se encontram principalmente no interior do país. A campanha do republicano contra o aborto e a nomeação da juíza conservadora Amy Coney Barrett para a Suprema Corte fariam parte dessa estratégia.
Mas a própria evolução do universo eleitoral terá custado a Trump a reeleição, como já se viu com os votos dos jovens. A participação de mulheres negras e latinas está aumentando. De acordo com dados do Pew Research Center, se em 2010 72% das eleitoras eram brancas, este número caiu para 67% em 2018. Na esperada contramão estão as mulheres afro-descendentes e hispânicas, que passaram de 22% para 26% do total de eleitores – o que equivale a mais de 22 milhões de votos. Como se viu com a afluência às urnas e com as primeiras análises pós-voto realizadas, o aumento do eleitorado é constituído por eleitores jovens, mas também por mulheres solteiras e por minorias raciais e étnicas. E as mulheres nesses grupos tendem a votar em maior número do que os homens negros e latinos. Além disso, as mulheres jovens tendem a ser mais engajadas na busca da igualdade de gênero e na luta contra o racismo do que os homens.
Mais além dos dados demográficos que surgirão das últimas eleições nos Estados Unidos e da possibilidade de que Trump ainda tenha conseguido magnetizar parte do eleitorado feminino, a verdade é que, como afirma a jornalista palestina Rula Jebreal, Joe Biden deve muito de sua vitória às mulheres. Vitória cujo roteiro começou de fato nas ruas, com as mulheres que, em 2017, logo após a posse de Donald Trump, organizaram a “Marcha das mulheres em Washington”. A mobilização, que se estendeu a várias cidades dos mais distantes países, viu milhões de mulheres tomarem as ruas contra a arrogância do presidente recém-eleito e das políticas antidireitos de sua plataforma. Muitos outros protestos e movimentos se seguiram, e do MeeToo a Black Lives Matter, as mulheres estiveram sempre no centro da resistência e das demandas para um país mais inclusivo e igualitário. Quer vençam os democratas ou os republicanos, aquele das mulheres é um eterno ‘work in progress’. E desta vez não será diferente.