Fazia 15 anos que não comprava uma máquina de lavar roupas. Minha última aquisição remontava a 2005, e as mudanças do mundo nesse período se refletiram na busca de um eletrodoméstico, que é também a busca de um mundo, que não existe mais.
De Thais Palermo Buti
Com dois critérios determinantes para a compra (profundidade e orçamento), aventurei-me na selva da pesquisa online e telefônica, encontrando-me impossibilitada de rodar pelas lojas, por estar obrigada ao isolamento social imposto pelas leis italianas, tendo acabado de retornar à Italia do Brasil. Não me lembro dos critérios aplicados na minha compra de 2005, nem a lavadora escolhida, mas terá sido certamente uma compra mais despreocupada. Aos dois critérios determinantes de profundidade e orçamento, quis adicionar outro: uma marca italiana de produção nacional, para valorizar a indústria italiana e vingar-me, em nome do povo italiano, dos chineses que nos imergiram no Coronavírus. Depois de ter ligado à MediaWorld e ter sido avisada por um robô que um operador me responderia da Albânia, também decidi não contar com os gigantes do eCommerce ou com as grandes redes de comercialização, fazendo uma série de validíssimas considerações sobre os inimigos jurados da economia local, do bem-estar social e dos trabalhadores, e do meio ambiente.
Fora Amazon em primeiro lugar, fora MediaWorld, fora Euronics, e assim por diante. Somente marcas italianas produzidas localmente, e compra através de canais de comercialização tradicionais como as lojas de bairro – que, incrivelmente, ainda existem. A partir daí, minha procura transformou-se em uma Odisseia, no sentido mais infeliz do termo: uma tentativa inútil de voltar a uma Ítaca que não existe mais.
O lento desmantelamento do sistema industrial italiano
A procura da lavadora me colocou frente à frente com uma verdade tão amplamente conhecida e debatida que já o simples mencioná-la me cansa; mas é tão dolorosa quanto é necessário enfrentá-la: o desmoronamento da indústria italiana, pelo menos de muitos dos seus setores de ponta, que comportou o desmoronamento do tecido social que as sustentava.
A indústria de eletrodomésticos è um caso emblemático: um dos núcleos da industrialização italiana da pós-Segunda Guerra Mundial, foi erodida antes pela concorrência dos países do Leste Europeu, evoluídos tecnologicamente graças à construção de cadeias geradas pela manufatura alemã e competitivos porque com um custo do trabalho inferior em relação à Italia, e depois pela China, que entrou com toda a força no mercado há alguns anos (comprando, por exemplo, a Candy, uma histórica marca italiana).
Peguemos as marcas Ariston e Indesit. Nos anos Oitenta, a proprietária da marca Ariston compra o seu histórico concorrente, Indesit, que, na Região de Campânia, possui quinze estabelecimentos produtivos e ocupa mais de cinco mil operários, produzindo rádios, televisores, geladeiras, lavadoras. No final dos anos Noventa, a sociedade começa o seu nivelamento por baixo dos custos de produção, reduz gradualmente o número de operários nos estabelecimentos italianos – que nos anos dois mil empregará ainda 1200 trabalhadores – e em 1999 abre o primeiro estabelecimento na Polônia, para a produção de fogões. Para chegar então à venda da empresa em 2014 à estadunidense Whirlpool, com mais um pedaço da história industrial italiana que terminou em mãos estrangeiras. E chega finalmente, em 2019, ao fechamento do estabelecimento de Nápoles, com a demissão de mais de 400 trabalhadores. Ponto final. O então ministro do Desenvolvimento Econômico, Luigi Di Maio, do partido populista “Movimento 5 Stelle”, teve uma dura reação, escrevendo no Facebook: “Pretendo que sejam feitos esclarecimentos”. Hoje, como atual Ministro das Relações Exteriores, haveria que perguntar-lhe se continua pretendendo.
O fechamento da ex Indesit de Nápoles ocorreu naquela que entrou para a história como uma das piores semanas da indústria italiana dos últimos anos, em junho de 2019. A sequência de episódios mostrou a fragilidade do tecido produtivo italiano, evidencidou as rachaduras do edifício econômico, civil e social, e fez transparecer o sentido de desorientação de um organismo – o sistema industrial italiano – que vivencia uma falta de ar estratégica. Em uma única semana, alguns símbolos importantes da indústria italiana desabaram e pulverizaram-se milhares de empregos: os 1800 trabalhadores da empresa de venda de móveis Mercatone Uno, que faliu; os 1400 demitidos da ex Ilva, uma controversa empresa siderúrgica da cidade de Taranto, na Região da Puglia, vendida à Arcelor Mittal (franco-indiana); os 420 operários de Whirlpool, e sem esquecer dos 76 dependentes da Unilever, mandados à casa pela transferência da produção do Caldo Knorr a Portugal. São histórias conhecidas, estradas percorridas muitas vezes, que se refletem na realidade das sociedades fragmentadas e consumistas de hoje, serviciais mais que de serviço, e que Giuseppe D’Onofrio resume bem, em “Napoli Monitor”:
“Nestes anos, as transformações geradas pela reestruturação da economia capitalista iniciada no começo dos anos Oitenta – fragmentação dos processos produtivos, especialização flexível, externalizações em países caracterizados por baixos salários e ausência total ou parcial de direitos dos trabalhadores, organização reticular da produção – já determinaram o declinio industrial de inúmeras cidades e zonas territoriais, redesenhando a geografia do trabalho e da produção (…) o desmantelamento da grande indústria ocorre em modo sempre mais “científico”, mediante o recurso à transferência do ramo de empresa: ‘o empresário – conta Rafael, sindicalista da província de Caserta – cede a empresa a outro empresário, a quem então externaliza por três anos parte da produção. No vencimento dos contratos, o empresário concede os amortecedores sociais e procede ao fechamento porque não é capaz de obter outros contratos no mercado. Esta foi a estratégia principal para desmantelar as fábricas e a classe operária nos nossos territórios’.”
Partindo de pontos diferentes mas chegando chegando à mesma amarga conclusão de D’Onofrio, o jornalista Paolo Bricco faz uma lúcida análise do caso Indesit para explicar o destino do “capitalismo familiar” na Itália: “Whirlpool conta a escolha de muitas famílias de empresários italianos que parou de fazer indústria. Os Merloni, que venderam a Indesit em 2014, são somente uma das tantas famílias históricas do nosso capitalismo industrial que, a um certo ponto, decidiram fazer outra coisa. Venderam a investidores estrangeiros ou construiram o mecanismo ambíguo da fusão com a troca de ações que, no fim, as transformaram de famílias de empresários a famílias acionistas. (…) o capitalismo familiar histórico não existe mais, senão em mínima parte. De industriais que foram, os fundadores da Itália manufatureira – no Piemonte, na Lombardia, na Marche, na Toscana, no Veneto – tornaram-se senhores facultosos, beneficiários de posições private banking, clientes de family office entre a Suíça e Hong Kong, proprietários de sociedades pessoais com as quais fazer investimentos pessoais, titulares de holdings com as quais exercitar o neutro e ascético trabalho de investidor. Sem mais o cheiro da fábrica”.
E talvez precisamos deste cheiro de fábrica, agora mais do que nunca.
A guerra das máscaras na diplomacia 2.0
Se do desmantelamento de um sistema industrial derivasse somente a escolha entre ter que lavar roupas à mão ou comprar lavadoras da China ou do Leste Europeu, não teríamos grandes problemas. Em efeito, vimos nos adequando muito bem. O problema surge quando percebemos que não temos mais a capacidade produtiva necessária para enfrentar uma emergência sanitária como aquela da pandemia de COVID-19. Quando não sabemos o que fazer das Ferraris e Armanis produzidos no território, se não temos respiradores ou máscaras. Quando nos damos conta de estarmos como um usuário eBay na intrincada e impiedosa concorrência do mercado internacional para comprar os aparatos que nos fazem respirar.
E no auge da crise na Europa, eu olhava para a Itália desde uma quase inalcançável América Latina e, depois de tudo, a invejavo um pouco: havia um governo que tomava decisões mais ou menos coordenadas (ainda que à italiana), havia um órgão central, a Proteção Civil, que fornecia os dados sobre a evolução da pandemia e chamava o país à reconversão industrial, havia um parque industrial que se relançava, temporariamente que fosse, para produzir aquilo que era necessário produzir.
Não quero dizer que a Itália è a Alemanha, e isso se notou novamente durante a crise. Mas, no Brasil, eu tinha que assistir à chegada da pandemia com a sabedoria amarga dos condenados à morte. Deixando de lado todas as considerações já feitas em outras ocasiões e amplamente difundidas sobre a gestão da crise por parte do governo brasileiro e sobre as suas consequências, eu estava desconcertada com as notícias relativas à escassez dos dispositivos de proteção, dos reagentes para os testes, dos respiradores, e do pessoal médico-sanitário, mas sobretudo, estava horrorizada pelas causas desta carência estrutural e por como as autoridades, cada uma em um salve-se quem puder, tentavam reparar o dano.
Enquanto a reconversão industrial para a produção de equipamentos sanitários avançava no mundo, no Brasil, devido à ausência do governo federal, esta se limitou a esforços pontuais de entes setoriais e empresas sobretudo do setor automotivo. Contemporaneamente, alguns membros do governo, com um timing fora do normal, decidiram lançar campanhas ultrajantes contra a China, principal parceiro comercial do Brasil, abrindo uma crise diplomática com aquele que è hoje, queiramos ou não, o principal fabricante de produtos fundamentais para combater a pandemia, colocando em grave risco o fornecimento destes equipamentos.
Quem mais, quem menos, mas os cidadãos de todos os países do globo foram o público pagante, com sangue, do faroeste comercial ao qual se assistiu nestes meses, e que zombou do conceito de “livre mercado” tão conclamado pelos liberais de turno. A pandemia desnudou a verdadeira natureza das relações entre muitos países, que foram ainda mais danificadas devido às tensões nascidas sobretudo sobre questões comerciais, como a disponibilidade de medicamentos e equipamentos médicos.
Enquanto a China inaugurava a sua nova diplomacia das máscaras, o soft power nos tempos do coronavírus, os Estados Unidos foram acusados por diversos países, entre eles França e Alemanha, de usar táticas de pirataria para açambarcar o maior número possível de suprimentos. Tornou-se rotina para o governo de Trump roubar contratos já assinados e às vezes pagados por outros países, oferecendo preços muito superiores aos de mercado; suspender a entrega das compras paradas em seus portos e aeroportos e destinadas às regiões que tinham já contrato assinado para a compra dos produtos; confiscar espedições de máscaras compradas de outros países à China, e que faziam conexão em terceiros países (Bangkok, na Tailândia, por exemplo); mandar seus funcionários às pistas de decolagem na China com dinheiro em mãos e oferecer três ou quatro vezes o preço do contrato, para então mandar seus aviões a buscar as mercadorias, e assim por diante.
O Brasil – que depende em aproximadamente 90% da importação destes produtos, quando em 1979 precisava importar somente 25% – foi vítima de muitos desses contratos cancelados de última hora pela China, sem alguma explicação, e ficou a ver navios enquanto as pessoas morriam nos hospitais. É a justiça do bom e velho capitalismo.
A verdadeira guerra não è contra o COVID-19
Apesar da terminologia bélica escolhida para enfrentar a pandemia, da qual falamos neste artigo, a verdadeira guerra que se deveria combater não è contra o COVID-19, mas contra os abusos típicos do livre mercado que, coerente consigo mesmo, não faltaram nem mesmo nesta ocasião. Do Brasil à Espanha, da Itália à Turquia, sem esquecer a Índia, o Peru, Costa Rica, quase todos os países protagonizam – como produtores ou como compradores – a guerra das máscaras, uma guerra comercial para a compra ou a venda, a melhor preço, de material sanitário.
É banal e ingênuo atribuir a culpa pela pandemia aos orientais que comem pangolins, assim como é superficial apontar o dedo contra Trump ou Xi Jinping, que nada mais são que arautos, talvez mais vulgares ou ferozes do normal, do imperialismo que as suas nações personificam desde sempre.
Talvez fosse necessário, ao contrário, perguntar-nos: por que eu não consegui comprar a minha lavadora slim (porque uma simples “estreita” parece que já não existe mais) de marca italiana? E por que nunca consegui descobrir onde foi realmente produzida ou montada aquela que comprei – uma Electrolux? E por que não consegui comprá-la em uma loja de bairro, uma vez que ultrapassava completamente o orçamento? Terei feito feliz a MediaWorld, talvez menos a centralinista albanesa, mas quiçá, talvez seja o único trabalho possível que a faz sobreviver e ela está feliz da vida com ele. Não sei se a produzir as peças da minha lavadora novinha em folha foram crianças de doze anos, e se quem fará a entrega em casa será um “colaborador” de MediaWorld que quebra suas costas por 3 euros a entrega. Eu queria evitar tudo isso, mas não consegui.
Por que chegamos a esta situação?
Se queremos enxergar as motivações da situação atual, talvez então devêssemos saber que nas últimas décadas, isto è, da liberalização financeira dos anos 80/90, o peso da finança cresceu enormemente em relação àquele das atividades produtivas e econômicas. Como informa esta “Mini Guida para entender a crise financeira”, elaborada pela Banca Etica há alguns anos atrás, entre 1980 e 2005, os assets da finança passaram de 109% a 316% do valor da produção mundial. A maior parte das grandes empresas hoje são controladas por atores financeiros como fundos de pensão ou de investimento, cujo objetivo é a maximização do lucro a curto prazo, e não o desenvolvimento a longo prazo da própria empresa. Muitas dessas empresas industriais, ademais, realizam boa parte dos seus faturamentos através de atividades financeiras e não produtivas, tornando de fato impossível distinguir entre capital produtivo e capital especulativo.
Não por acaso è a finança a causa das contínuas e profundas crises que abalaram a economia mundial nos últimos anos, e que vão, então, contaminar a chamada “economia real”. Vivemos em um mundo de fantasia, com um futuro hipotecado e um presente endividado, nas mãos de especuladores que – sejam eles rampantes representantes da new ou da GIG economy ou velhos industriais cansados do cheiro da fábrica – se enriquecem graças a novas ou velhas escravidões, com um capital crescente que navega em iates de paraíso em paraíso.
Neste ínterim, envididamo-nos sempre mais, sobretudo as famílias, mesmo na Itália, país considerado “atrasado” financeiramente por ser constituído por famílias de poupadores. No Brasil, ninguém se pergunta qual o custo de um produto final, mas somente se conseguirá pagar a prestação mensal. Nos Estados Unidos, onde a dívida privada há muito superou o PIB do país – tendência inversa àquela da dívida pública sempre menor – e onde as dívidas são contraídas habitualmente não só para a compra de casa mas também para gastos correntes, médicos e alimentares, uma porcentagem importante da população não possui reservas econômicas suficientes para ficar sem trabalhar nem mesmo por um mês.
Este mundo fabuloso do dinheiro a bom mercado, do crédito fácil, da parcela infinita, lido no contexto real, mas paralelo, que è aquele da desindustrialização, da igualmente infinita mobilidade dos capitais em busca de ganhos maiores, do desenvolvimento tecnológico, junto com uma talvez excessiva distração por demasiado tempo de nossa parte, construiram um mix explosivo – cada componente com o seu próprio peso – que levou à realidade que vivemos hoje.
Enquanto um punhado de trabalhadores fazia greves solitárias em frente aos portões das fábricas italianas, assistidos por sindicatos inertes com as migalhas nas mãos, o dinheiro, aquele verdadeiro, cruzava fronteiras, e muitos de nós enchiam o peito com os contratos de trabalho temporários, a modernidade, orgulhosos da nova sociedade de serviços, das novas cidades do consumo, que tomaram o lugar, em muitos territórios, das cidades industriais, daquele “hinterland”, hoje ocupado por galpões da Amazon, e que se tornavam sempre mais perdidos e desmembrados, onde “fantasiava-se de um florido passado capitalista que durante um tempo deu a alguém a esperança que sua vida pudesse melhorar”, como escrevu a cientista política Jodi Dean em seu artigo “Neofeudalism: The End of Capitalism?”.
Para Dean, os hinterland seriam um símbolo da era pós-capitalista em que já vivemos: “restos de um capitalismo industrial que os deixou para trás para valer-se de mão de obra menos cara, os hinterland estão prontos para a nova intensa exploração do neofeudalesimo. Não fabricando mais objetos, seus habitantes sobrevivem trabalhando em armazéns, call centers, lojinhas e fast foods. O recente livro de Phil A. Neel Hinterland sublinha as semelhanças entre China, Egito, Ucraina e Estados Unidos: são países cheios de landes desoladas e quase desabitadas e cidades no limite do superlotação”.
Quantas coisas podemos aprender com a compra de uma lavadora.
A minha, a propósito, è magnífica.
***
Fontes e artigos de interesse:
Mascherine e respiratori, ecco le fabbriche che si riconvertono
China cancela venda de respiradores para Bahia e carga fica retida nos EUA
Arcuri alla guerra commerciale su mascherine e ventilatori, con Pechino nostra alleata
Debito privato in volo: negli Stati Uniti i semi di una nuova recessione
La fine di Indesit e la scomparsa della grande industria in Campania
Imagens:
https://pixabay.com/it/photos/lavatrice-giocattoli-metallo-foglio-546985/
https://pixabay.com/it/photos/fan-raffreddamento-elica-3645379/
https://pixabay.com/it/photos/luoghi-perduti-vecchio-decadimento-1549096/
https://pixabay.com/it/photos/statua-maschera-antigas-respiratore-918889/
https://pixabay.com/it/photos/vendita-consumi-moda-lo-shopping-5379799/
https://pixabay.com/it/illustrations/dollaro-consumismo-business-1644801/