A escalada de incompetência, autoritarismo e violência do presidente Jair Bolsonaro, à qual testemunham incrédulos milhões de brasileiros, talvez tenha chegado a um ponto crítico. As manifestações do último fim de semana fazem esperar na organização de uma agenda comum de diferentes oposições, que dê o impulso necessário a um processo de impeachment.
02/01/2020 – por Thais Palermo Buti
Ontem pela manhã, foi transmitida na Rádio Onda Rossa uma minha intrevista gravada no sábado (30), na qual afirmava que, no momento, não via espaço para a organização de movimentos de resistência no Brasil, seja pela dificuldade em realizar manifestações durante as medidas de isolamento social postos em prática para lidar com a pandemia de Coronarivus, seja pela natureza da crise atual, que é uma crise nascida das entranhas de um governo caracterizado menos por uma maioria compacta do que por uma oposição exangue.
Três dias após a entrevista, corro a por remédio: o último fim de semana foi marcado por uma profusão de manifestações pela democracia e contra o governo Bolsonaro, depois do enésimo ataque feito contra instituições democráticas, o Parlamento e o Supremo Tribunal em primeiro lugar. Os movimentos, como aponta o jornal Folha de São Paulo, recriam em certo sentido o clima vivido em 1984, com a afirmação do movimento “Diretas Já”, pelo fim da ditadura e pelo retorno à democracia.
Agora, como então, adversários políticos e ideológicos se unem contra um inimigo comum. Mas a diferença, como afirmou a socióloga Maria Victoria Benevides à Folhapress, é que em 1984 “estávamos numa situação de quem está saindo de uma ditadura e agora nosso medo é estarmos entrando numa”.
O Movimento Estamos Juntos, que coletou cerca de 250.000 assinaturas desde que foi lançado no sábado, 30 de maio, é a iniciativa online de maior sucesso até agora. O texto, que não nomeia o presidente, mas pede respeito à Constituição e à separação de poderes, cita as Diretas Já, afirmando que é hora de deixar de lado velhas disputas em busca do bem comum. A lista de signatários é variada, de bolsonaristas arrependidos a socialistas, e reúne as diferentes nuances da crescente oposição a Bolsonaro.
Os líderes do movimento, no entanto, veem a necessidade de expandir ainda mais o seu alcance, e uma live está programada para os próximos dias, em um esforço para atrair apoio e visibilidade.
Em resposta aos repetidos ataques do presidente às instituições democráticas e à imprensa, cerca de 700 juristas compraram o espaço de uma página inteira dos jornais Folha de São Paulo e Estadão para divulgar, no domingo 31 de maio, um manifesto contra Bolsonaro. Intitulado “Basta!”, o documento afirma que “O Brasil, suas instituições, seu povo não podem continuar a ser agredidos por alguém que, ungido democraticamente ao cargo de presidente da República, exerce o nobre mandato que lhe foi conferido para arruinar com os alicerces de nosso sistema democrático, atentando, a um só tempo, contra os Poderes Legislativo e Judiciário, contra o Estado de Direito, contra a saúde dos brasileiros, agindo despudoradamente, à luz do dia, incapaz de demonstrar qualquer espírito cívico ou de compaixão para com o sofrimento de tantos”. Publicado na plataforma Change.org, o manifesto superou as 30 mil assinaturas em poucos dias.
Mais moderna e incrivelmente eficaz, a campanha # Somos70porcento, lançada pelo economista Eduardo Moreira conquistou as redes sociais no fim de semana. A hashtag subiu para o primeiro lugar no Brasil imediatamente após seu lançamento.
A ideia é baseada na pesquisa publicada pelo instituto Datafolha em 26 de maio passado, sobre a popularidade do presidente, que confirma cerca de 30% da população ainda fiel a Bolsonaro. Moreira disse que ficou impressionado que as pessoas estavam desanimadas e queixavam-se de um apoio ainda tão alto, e percebeu que 30% estavam se comportando de forma firme e agressiva, como se fossem a maioria, enquanto 70% dos brasileiros querem um país democrático. Assim, ele transformou uma probabilidade estatística em uma marca.
Moreira, que usou a expressão “Estamos chegando” na apresentação da campanha, faz alusão ao aumento do índice de rejeição do governo Bolsonaro, que parece marcar uma tendência, razão pela qual #Somos70porcento poderia em breve chegar a 80%.
Desafiando os riscos de contágio e as agressões da polícia, no domingo 31, as torcidas de quatro grandes times de futebol paulistas se uniram para organizar uma demonstração de repúdio em Bolsonaro e a favor da democracia.
A passeata foi convocada pelos coletivos antifascistas da Gaviões da Fiel, a maior torcida do Corinthians (time de tradição antifascista, de Sócrates e de sua democracia corintiana), como oposição à mais uma demonstração de apoio ao presidente Bolsonaro e à intervenção militar que, como todo domingo, acontecia no centro de San Paolo. O ato foi pacífico até ser reprimido pela Polícia Militar com gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral, após as provocações causadas pelos manifestantes bolonaristas, conforme confirmado pelo coronel Camilo Batista – que mais tarde mudou a versão dos fatos.
A organização estima uma presença entre duas mil e quatro mil pessoas. Para Chico Malfitani, um dos fundadores da Gaviões, a ideia agora é “ser um ‘gatilho de pólvora’. É riscar o primeiro fósforo, já que os partidos de oposição e movimentos populares não se manifestam. Entendemos que tem pandemia, mas chega uma hora que temos que mostrar que o povo quer democracia. Nós somos 70%. Não é possível que 30% vão impor vontade de ditadura militar. A Gaviões foi fundada na ditadura, sabemos o que é isso”, afirmou à UOL Esporte.
Mobilizações foram registradas em 14 estados brasileiros, e as torcidas e coletivos de torcedores pretendem fazer novos atos a favor da democracia e contra Bolsonaro. O movimento não tem um líder geral mas se caracteriza por uma pauta comum de anti-fascismo, defesa da democracia e posição crítica em relação ao governo federal.
As iniciativas supra-partidárias que surgiram nos últimos dias para defender a democracia e reagir ao presidente Jair Bolsonaro viram um aumento significativo no número de adesões nas últimas 24 horas, e outras organizações se uniram em defesa dos pilares constitucionais. A seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil lançou um apelo público, pedindo à sociedade que diga um veemente “não a ameaças de quebrar a ordem democrática”.
Principal símbolo da oposição, o ex-presidente Lula, do Partido dos Trabalhadores, manifestou sua contrariedade à adesão aos manifestos, e defendeu a criação de um documento próprio que reflita claramente a posição do partido. Lula, irritado com a presença de signatários que apoiaram o processo de impeachment em Dilma Rousseff em 2016 e abriram caminho para a eleição de Bolsonaro, pediu cautela ao decidir sobre a adesão aos documentos, para evitar o fortalecimento de iniciativas elitárias com o objetivo de cancelar o papel do Partido dos Trabalhadores.
Outro elemento que poderia desestabilizar Bolsonaro, se confirmado, é o crescimento dos coletivos relacionados com ou inspirados no movimento Antifa que, embora não possam ser colocados em uma categoria específica, têm em comum a horizontalidade e o fato de germinarem fora das estruturas políticas tradicionais.
As manifestações organizadas pelas torcidas em São Paulo e em outras capitais do Brasil no domingo passado são um exemplo do poder das manifestações populares e causaram a reação imediata de Bolsonaro, que compartilhou a mensagem do Presidente dos Estados Unidos Donald Trump em sua conta no Twitter, que afirma que o país passará a classificar os grupos antifascistas como “organização terrorista”.
Em poucos dias, as mais diversas frentes de reação parecem ter despertado no Brasil. E no país do futebol, a resistência pode começar justamente com a força popular dos torcedores.
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* Experta em formulação e gestão de projetos e jornalista da Radio Città Aperta de Roma
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Fontes:
Imagem torcedores: Jornalistas Livres https://jornalistaslivres.org
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https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2020/05/somos70porcento-xuxa-manifesto-fora-bolsonaro/
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https://esportes.yahoo.com/noticias/ato-torcedores-favor-da-democracia-234300307.html
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