Os dois estilos estratégicos de gestão da epidemia comparados

de Roberto Buffagni

Original italiano publicado em L’Italia e il Mondo – 14/03/2020

Proponho uma hipótese em relação aos diferentes estilos estratégicos de gestão da epidemia adotados na Europa e em outros países. Enfatizo que se trata de pura hipótese, uma vez que, para substanciá-la, são necessárias competências e informações estatísticas, epidemiológicas e econômicas que eu não possuo, e que não se podem improvisar. Objeções críticas e até radicais são bem-vindas.

A hipótese é a seguinte: o estilo estratégico de gestão da epidemia espelha fielmente a ética e o modo de entender os interesses nacionais e as prioridades políticas dos Estados e, em menor medida, das nações e dos povos. A escolha do estilo estratégico de gestão é incrivelmente política.

Os estilos estratégicos de gestão são, essencialmente, dois:

  1. Não se combate o contágio, mas aposta-se tudo no tratamento dos doentes (modelo alemão, britânico, parcialmente francês);
  2. Combate-se o contágio, contendo-o o máximo possível com medidas de emergência para o isolamento da população (modelo chinês, italiano, sul-coreano).

Quem escolhe o modelo 1 faz um cálculo de custo/benefício e decide, conscientemente, sacrificar uma cota da própria população. Essa cota é mais ou menos ampla, de acordo com a capacidade de resposta do serviço sanitário nacional, e particularmente, com o número de lugares disponíveis na terapia intensiva. Segundo o que consigo compreender, em efeito, o Coronavirus possui as seguintes características: alta contagiosidade, porcentagem limitada de mortes (diretas ou por complicações), mas porcentagem relativamente alta (cerca de 10%, me parece) de doentes que precisam de cuidados nas repartições de terapia intensiva.

Se isto è verdade, em caso de contágio maciço da população – na Alemanha, por exemplo, Angela Merkel prevê entre 60-70% de contagiados – nenhum serviço sanitário nacional será capaz de oferecer os tratamentos necessários a todos os doentes internados em terapia intensiva, uma parte dos quais, portanto, se condena à morte de antemão. Esta cota de pré-condenados à morte será mais ou menos ampla de acordo com a capacidade do sistema sanitário, com a composição demográfica da população (os mais velhos são mais vulneráveis), e com outros fatores imprevisíveis, como possíveis mutações do vírus.

A rácio desta decisão parece ser a seguinte:

  1. A adoção do modelo 2 (contenção da infecção) tem custos econômicos devastantes;
  2. A cota de população pré-condenada à morte é, em grande medida, composta por pessoas idosas e/ou já doentes, e portanto sua morte não só não compromete a funcionalidade do sistema econômico, mas ao contrário a favorece, aliviando os custos do sistema de previdência e da assistência sanitária e social no médio prazo, desencadeando ademais um processo economicamente expansivo graças às heranças que, como já ocorrido nas grandes epidemias do passado, aumentarão a liquidez e o patrimônio de jovens com mais alta propensão ao consumo e ao investimento, se comparados aos seus antepassados.
  3. Sobretudo, a escolha do modelo 1 aumenta a potência econômico-política relativa dos países que a adotam em relação aos seus concorrentes que adotam o modelo 2, os quais devem descontar o prejuizo econômico devastante que ele comporta. Aproveitando-se das dificuldades dos seus concorrentes do modelo 2, as empresas dos países 1 poderão substituir-se rapidamente a elas, conquistando cotas de mercado significativas e impondo-lhes, no médio prazo, a própria hegemonia econômica e política.

Naturalmente, para a adoção do modelo 1, são indispensáveis dois requisitos: um centro direcional político estatal coerentemente e tradicionalmente orientado a uma acepção particularmente radical e impiedosa do interesse nacional (típicos os casos britânico e alemão); uma forte disciplina social (eis a razão pela qual a adoção do modelo 1 por parte da França será problemática, e provavelmente se assistirá a uma reconversão da escolha estratégica do modelo 2).

A adoção do modelo 1, em suma, corresponde a um estilo estratégico marcadamente bélico. A escolha de sacrificar conscientemente uma parte da população econômica e politicamente pouco útil, em prol da potência que o sistema econômico-político pode desenvolver – em poucas palavras, a decisão de liberar-se da carga para combater mais eficazmente – é de fato uma escolha típica de que se precisa em tempos de guerra, quando é normal porque indispensável, por exemplo, privilegiar cuidados médicos e provisões alimentares dos combatentes em detrimento de cuidados e alimentos para todas as outras pessoas – incluindo idosos e crianças – respeitando somente os limites impostos pela necessidade de sustentar o moral da população, que é igualmente indispensável manter.

Os Estados que adotam o modelo 1, então, não agem como se seus concorrentes fossem adversários, mas como se fossem inimigos, e como se a competição econômica fosse uma verdadeira guerra, que se diferencia da guerra guerreada somente pelo fato de os exércitos não irem à luta. A conduta deste tipo de guerra, justamente por se tratar de uma guerra encoberta, será particularmente dura e cruel, porque não existe algum direito bélico, ou a honra militar, que por exemplo proibe os maus tratos, ou pior, o assassinato de prisioneiros e civis, o uso de armas de destruição de massa, etc.

Para concluir, a escolha do modelo 1 privilegia, na avaliação estratégica, a janela de oportunidade imediata (conquistar com uma ação rápida e violenta uma vantagem estratégica sobre o inimigo), em relação à janela de oportunidade estratégica de médio-longo prazo (fortalecer a coesão social, diminuir a dependência e a vulnerabilidade da própria economia em relação às outras, aumentando  os investimentos estatais e a demanda interna). 

Estátua de Sun Tzu em Yurihama, Tottori, Japão. Fonte: Wikipedia

À luz dessas considerações sobre os Estados que adotam o modelo 1, é mais fácil descrever o estilo ético-político dos Estados que adotam o modelo 2.

No caso da China, não cabe dúvidas de que o centro direcional político chinês sabe perfeitamente que a competição econômica é componente decisiva da “guerra híbrida”. De fato, foram justamente dois coroneis do Estado Maior chines, Liang Qiao e Xiangsui Wang, que nos anos Oitenta elaborarom o texto inspirador da “guerra assimétrica”[1].

Acredito que o centro direcional político chinês escolheu, e parece que com êxito, adotar o modelo 2 por três razões de base:

  1. a) o caráter marcadamente comunitário da tradição cultural chinesa, na qual o conceito liberal de indivíduo e o conceito cristão de pessoa tem escassa ou nula importância;
  2. b) o profundo respeito pelos velhos e antepassados, alicerces do Confucionismo;
  3. c) uma avaliação estratégica de longo prazo, que pode sintetizada nestas duas máximas de Sun Tzu, o pensador que mais inspira o estilo estratégico chinês: “a vitória se obtém quando os superiores e os inferiores são animados pelo mesmo espírito”, e “um guia coerente consente aos homens desenvolver a confiança de que o seu ambiente é honesto e confiável, e que vale a pena combater por ele”. Em outras palavras, acredito que a direção chinesa ponderou que a vantagem estratégica de longo prazo de preservar e, inclusive, fortalecer a coesão social e cultural da própria população, superaria o custo de curto-médio prazo do prejuízo econômico, e da renúncia a tirar proveito imediatamente das dificuldades dos adversários. Porque as “vias que levam a conhecer o sucesso” são três: 1. Saber quando se pode ou não se pode combater; 2. Saber-se valer seja de forças numerosas que de forças exíguas; 3. Saber infundir propósitos iguais nos superiores e nos inferiores.

No caso da Itália, a escolha – por mais incerta e mal executada que seja – do modelo 2, acredito que dependa das seguintes razões:

1) no plano cultural, da influência da civilização italiana e europeia pré-moderna, prenha como é de sensibilidade pré-cristã, camponesa e mediterrânea pela família e a criaturalidade, logo parcialmente absorvida pelo catolicismo contra-reformado e pelo barroco: uma influência de longuíssima duração que continua a fazer efeito, não obstante a protestantização da Igreja Católica atual, e não obstante a hegemonia cultural – ao menos de superfície – do liberalismo ideológico e econômico;

2) ainda no plano cultural, pelo pacifismo instaurado depois da derrota na Segunda Guerra Mundial e perpetuado – antes pelas esquerdas comunistas e pelo mundo católico, e logo pelas dirigências liberal-progressistas da União Europeia; um pacifismo que gera expressões estranhas como “soldados de paz”, e a negação metódica da dimensão trágica da história.

3) no plano político, seja pela grave desordem institucional, onde os níveis decisórios se sobrepõe e se entravam reciprocamente, como ficou claro no conflito entre Estado e Regiões no começo da crise epidemiológica; seja pelas preocupações eleitorais de todos os partidos; seja pela frágil legitimação do Estado, antigo problema italiano.

4) no plano político-operativo, pela incrível incapacidade das classes dirigentes, nas quais décadas de seleção ao avesso e o costume de jogar responsabilidades, decisões e relativas motivações nas costas da União Europeia induziram uma forma mentis que leva sempre a escolher a linha de menor resistência: que, neste caso, é a escolha da contenção do contágio, porque a escolha da via do triage bélico de massa (independentemente de como se queira julgá-la, e eu a julgo muito negativamente), requer de uma notabilíssima capacidade de decisão política.

Em outras palavras, a escolha italiana do modelo 2 tem razões superficiais e conscientes nos nossos defeitos políticos e institucionais, e razões profundas e semi-conscientes nos méritos da civilização e da cultura na qual, quase sem sabê-lo, a Itália continua a inspirar-se, sobretudo nos momentos difíceis: fomos sem dúvida humanos e civis, e talvez estrategicamente previdentes, sem saber muito bem o porque. Mas o fomos, e disto devemos agradecer nossos ancestrais, os Lares [2] cujo culto, sob diferentes nomes, perde-se nos séculos e milênios e que, sem sabê-lo, hoje honramos e veneramos, fazendo todo o possível para cuidar dos nossos pais, mães, avós, ainda que não sirvam mais para nada.

Constatar que os dois modelos impõem métodos operacionais de implementação exatamente opostos ao do estilo estratégico faria sorrir Sun Tzu e talvez também Hegel.

A implementação do modelo 1 (não contemos o contágio, sacrificamos conscientemente uma cota de população), não requer nenhuma medida de restrição da liberdade: a vida cotidiana continua exatamente como antes, exceto que muitos adoecem e um percentual não exatamente previsível mas não irrelevante, não podendo receber os tratamentos necessários por razões de capacidade do sistema sanitário, morre.

A implementação do modelo 2 (contemos o contágio para salvar todos os salváveis) requer, ao contrário, a aplicação de medidas severíssimas de restrição das liberdades pessoais e, ainda mais, exigiria, para ser corretamente efetuado, a implementação de uma verdadeira ditadura, ainda que suave e temporária, a efeitos de garantir a unidade do comando e a proteção da comunidade da explosão das paixões irracionais, ou seja, dela mesma.

Operacionalmente, a direção executiva do modelo 2 deveria ser confiada justamente às forças armadas, que possuem seja as competências técnicas, seja a estrutura rigidamente hierárquica adequadas.

Concluo dizendo somente que estou feliz que a Italia tenha escolhido de salvar todo o salvável. O faz desastradamente, e não sabe bem porque o faz; mas o faz. Desta vez é fácil dizer: right or wrong, my country.

[1] Liang Qiao e Xiangsui Wang, Guerra senza limiti. L’arte della guerra asimmetrica fra terrorismo e globalizzazione, LEG Edizioni 2011

[2] v. https://www.romanoimpero.com/2018/07/culto-dei-lari.html