O Brasil entre carrascos e autoritários

Original em italiano em Radio Città Aperta

De Thais Palermo Buti*

É muito difícil explicar ao mundo o que está acontecendo no Brasil neste momento. A situação atual supera qualquer previsão, mesmo a mais catastrófica. É verdade que aquela cerca de metade dos eleitores que já em 2018 abominava a retórica e a posição política (porque de um verdadeiro programa ainda não se falava) de Jair Bolsonaro, algo assim já esperava. Mas o presidente e o seus abjetos seguazes conseguem se superar dia após dia. E não havia momento pior para sermos liderados por um governo tão incapaz, negligente e incompetente, que permitiu um aumento do número de contagiados pelo COVID-19 de cem mil a quinentas mil pessoas em um mês.

Evolução do COVID-19 no Brasile. Fonte: https://coronavirusnobrasil.org/ . Acesso 31/05/20

Para quem tem uma certa visão da res publica e do Estado como garantidor e propagador do bem comum, Bolsonaro é uma desgraça desde o momento em que venceu as eleições em 2018. Graças ao altíssimo índice de rejeição em relação ao Partido dos Trabalhadores, que governou o país de 2003 até o golpe contra a presidente Dilma Rousseff em 2016, o presidente de extrema direita conseguiu aglutinar ao seu redor uma parte importante do eleitorado, variado mas consistente.

Sob a bandeira do anti-petismo e da anti-corrupção, aninharam-se embaixo das asas de Bolsonaro os eleitores da direita liberal, da extrema direita saudosa da ditadura, do onipresente centro, além de patriotas, evangélicos, milicianos, negacionistas e autodeclarados apolíticos.

As alianças e a formação do governo espelharam a tendência: o mundo empresarial uniu-se à agenda de liberalização e privatização do Ministro da Economia Paulo Guedes, e aqueles do agronegócio, em particular, às prioridades de desregulamentação e facilitação comercial em áreas protegidas do minitro do Meio Ambiente Ricardo Salles; os militares saíram de décadas de sombra para serem distribuídos em lugares chave do governo, a começar pelo Vice Presidente, o General Hamilton Mourão; ao ex juiz da operação “Lava Jato” Sergio Moro, herói nacional da cruzada anti-corrupção e responsável pela prisão do ex presidente Lula, foi confiado o Ministério da Justiça; para chefiar o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foi escolhida a pastora evangélica Damares Alves, enquanto o Ministério das Relações Exteriores foi ocupado pelo pró-estadunidense negacionista Ernesto Araújo.

O casamento aguentava. Em 2019, conseguiu-se aprovar a reforma da previdência – a dano dos mais pobres, sobretudo mulheres e trabalhadores rurais – que deveria levar a uma economia de bilhões de reais aos cofres do Estado; e este representava somento o começo da grande dessecação do Estado em prol da iniciativa privada.

Mas logo em seguida, as lutas viscerais entre Bolsonaro e os presidentes de Câmara e Senado corroeram cada vez mais a engrenagem. Sem a maioria absoluta no Congresso, o governo é obrigado a negociar com o chamado “Centrão”, constituído por parlamentares dispersos de centro-direita, não exatamente eméritos em fidelidade ideológica mas muito entendidos de compra e venda de votos.

A destruição total do Brasil limitou-se, até agora, à drenagem dos fundos para educação, ciência, cultura, saúde e os programas sociais, a uma redução de 30% da extensão territorial da floresta amazônica a causa do desmatamento e dos incêndios dolosos e não, causados por desregulamentações e pela redução da fiscalização ambiental, ao aumento indiscriminado do uso de agrotóxicos, e talvez algum outro dano que poderia ser reparado em poucos milhares de anos. Mas a crise econômica não foi superada. As grandes reformas não decolaram. O grande boom não chegou. Em seu lugar, chegou o Coronavirus.

 

Aliança do avestruz genocida

Coerente com si mesmo, desde os primeiros sinais de perigo para a saúde da população, o presidente fez aquilo que lhe sai melhor: minimizar, negar a evidência, desprezar as camadas mais vulneráveis dos brasileiros, posicionando-se claramente contra o isolamento social e a favor do uso indiscriminado da hidroxicloroquina, um antimalárico com perigosos efeitos colaterais, e da abertura de todo o tipo de atividade comercial – dos barbeiros, às igrejas e academias -, todas por ele classificadas como atividades essenciais.

O seu negacionismo lhe valeu o ingresso na restrita “Aliança do Avestruz”, junto com os presidentes da Bielo Rússia, Alexander Lukashenko, do Turkomenistão, Gurbanguly Berdymukhamedov, e da Nicaragua, Daniel Ortega.

Imagem: Financial Times

O termo foi inventado por Oliver Stuenkel, professor da Fundação Getúlio Vargas, para indicar os poucos líderes mundiais que negam a perigosidade do COVID-19, mas poderia induzir em erro quem vê em Bolsonaro o “idiota mais perigoso do mundo”, como disse o jornalista Philipp Lichterbeck.

O atual presidente do Brasil pode até ser um idiota, mas basicamente é um político sem escrúpulos, autoritário com traços fascistóides, narcisista e com sinais de psicopatia. As suas bandeiras são evidentes, e ele está seguindo passo a passo aquilo que tinha prometido – com exceção de acabar com a corrupção, que no seu governo tornou-se negócio de família, tendo-se adicionado algumas tonalidades da criminalidade organizada.

Enquanto os números de contagiados e mortos cresciam dia após dia, Bolsonaro, não satisfeito em desafiar a ciência, a comunidade internacional e o bom senso, lançou-se em ataques a seu próprio Ministério da Saúde, demitindo, em meados de abril, o ministro Luiz Henrique Mandetta, um acérrimo defensor do isolamento social e contrário ao uso da hidroxicloroquina como panaceia a todos os males. Culpado de ter superado o presidente nas pesquisas pela sua atuação durante a pandemia, Mandetta foi substituído pelo ilustre desconhecido Nelson Teich, oncologista, consultor e empresário da saúde privada que, na sua fulminante experiência como ministro da saúde – que durou apenas 28 dias – saiu como entrou: no mais total silêncio.

Desde dia 15 de maio, o Ministério da Saúde é conduzido interinamente pelo general Eduardo Pazuello, colocado inicialmente como Vice para vigiar a atuação de Teich na luta contra o coronavirus. Não teria sido necessário, de qualquer modo, pois era sabido que a prerrogativa para o novo ministro era aquela de não contradizer Bolsonaro na defesa da abertura do país e do uso da hidroxicloroquina. O blefe durou pouco porque, mesmo na sua inutilidade enquanto ministro, Teich não deixa de ser um médico e, diz-se, teria pedido demissão para não manchar o seu currículo.

À sua vez, como ministro interino, o general Pazuello iniciou um processo de militarização do Ministério, indicando 12 militares para cargos de confiança. Médicos e outros profissionais da saúde destacam-se por sua ausência.

Outra mudança adotada pela nova gestão militar foi aquela de esconder das redes sociais o número de mortos causados pela COVID-19. O gráfico com o total de casos confirmados, em acompanhamento, recuperados, óbitos e óbitos em investigação foi substituído por um “Placar da vida”, com o total de infectados, em recuperação, e brasileiros salvos (porque hoje no Brasil não se cura, mas salva-se, quem puder).

Fonte: Ministério da Saude

Mas a ação mais grave e determinante tomada até o momento pelo Ministério foi a modificação ao protocolo para o uso da hidroxicloroquina, cujo emprego agora é sugerido também nos casos menos graves, apesar dos pareceres controversos da comunidade médica. A recusa em mudar o protocolo tinha sido a gota d’água que levou às demissões de Mandetta e Teich.

Agora que ele alcançou seu objetivo com a droga milagrosa, parece que Bolsonaro não tem pressa em nomear um novo ministro da Saúde. Mesmo porque não será fácil encontrar um médico capaz de suportar a avalanche de bobagens que constituem o imaginário do presidente.

 

A judicialização da política de saúde: juízes e governos locais no combate ao COVID-19

Desde o início da pandemia, o comportamento de Bolsonaro não era um bom presságio das medidas que ele tomaria para combatê-la. Uma página inteira não seria suficiente para listar todas as ações irresponsáveis, para não dizer criminais, que ele cometeu desde o início de março.

A conseqüência, especialmente após a exoneração do ministro Mandetta, foi uma radicalização da crise de governabilidade que havia marcado o primeiro ano de governo e sua evolução para um total isolamento institucional do presidente. O contexto atual incentivou uma ação muito mais assertiva do Supremo Tribunal Federal, que também se tornou o principal objeto de ódio – junto ao Congresso – dos fiéis de Bolsonaro, os chamados “bolsonaristas raiz”.

Por outro lado, o governo, totalmente dividido, não possui as condições necessárias para obter, nem da opinião pública nem do Legislativo, o apoio necessário para limitar as ações da Corte que, em uma concertação sem precedentes na história da República – como sem precedentes é o isolamento absoluto de seu mais alto governante -, tomou as rédeas da conduta política da crise dos coronavírus, junto com os membros do Congresso, com os Tribunais regionais e os governos locais.

Na prática, para tentar blindar o país contra o bufão o governa, o Supremo entrou com tudo na administração política da crise, aceitando um após o outro os pedidos de inconstitucionalidade apresentados por diferentes sujeitos (organizações sociais, Ordens de advogados, partidos da oposição, parlamentares) relacionados aos decretos presidenciais, ou interpretando restritivamente as resoluções do Executivo.

Foram três a decisões fundamentais do Tribunal neste sentido.

A primeira, do final de março, proibiu a produção e a circulação da campanha publicitária veiculada nos canais oficiais do governo “O Brasil não pode parar”, e qualquer outra comunicação que possa reduzir a gravidade da pandemia ou deixe entender que a população deve retornar normalmente às suas atividades.

Frame da campanha “O Brasil nao pode parar”, do Governo federal

As outras duas decisões, de meados de abril, reafirmaram a competência dos estados e municípios na adoção das medidas necessárias para lidar com a pandemia de coronavírus, como o estabelecimento de regras de isolamento social, quarentena e restrição no uso de transporte público, e garantiram aos governos locais a legitimidade para definir quais deveriam ser as atividades essenciais, ou seja, aquelas que não param mesmo durante a quarentena ou o chamado “lockdown”.

As decisões de abril julgavam uma ação constitucional movida pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT, centro-esquerda) contra um decreto presidencial de 20 de março que concentrava no Executivo as decisões sobre isolamento, quarentena, interdição de transportes e serviços públicos e atividades essenciais durante a pandemia.

É somente graças a essa decisão que estados e municípios podem determinar autonomamente o fechamento de empresas e estabelecer regras para o funcionamento de todos os serviços, públicos e privados, em seu território. Também é graças a essa decisão que hoje no Brasil existem 30 mil, e não 100 mil mortos.

 

Brasil: candidato natural à primazia dos mortos

Mas o que explica o avanço incontrolável de contágios e mortes no Brasil, apesar do aparato institucional acionado para detê-los?

Em primeiro lugar, a configuração social e demográfica mesma do país o torna um forte candidato para alcançar o primeiro lugar em números de mortes por COVID-19. É impensável que as muitas e extensas periferias brasileiras possam parar, que seus habitantes possam ficar em casa esperando a curva descendente. A pobreza, em todas as suas declinações, não o permite, especialmente sob a administração de um governo que advoga pelo Estado mínimo, como não se via há quase vinte anos. Quando Bolsonaro diz que “o vendedor ambulante deve trabalhar para levar o pão à sua casa”, o faz porque sabe que ele, como presidente, nunca tomou e não está na sua pauta tomar decisões no sentido de suportar as pessoas que não podem ir ao trabalho.

Em segundo lugar, a posição de Bolsonaro como guia político e modelo comportamental de uma nação, recobre-o de uma responsabilidade da qual ele não está absolutamente à altura. Se os exemplos mais gritantes de sua ignomínia são as caminhadas e a participação em manifestações antidemocráticas, com selfies, beijos e abraços em apoiadores, sem usar qualquer dispositivo de proteção, os mais insidiosos são os pronunciamentos oficiais e as mensagens contínuas nas redes sociais de desprezo pelas vidas perdidas e pela própria luta contra a pandemia.

Selfie de Bolsonaro com apoiadora durante passeio em Brasilia, em 23 de maio passado. Reproduçao: Facebook

É evidente que o comportamento de Bolsonaro, além de privar o país de uma posição unívoca e de uma liderança coordenada, elementos fundamentais para a gestão eficaz de uma crise dessas proporções, tem uma influencia direta em muitos cidadãos e em como eles constroem a percepção da gravidade da situação e agem de acordo com esta construção.

A cruzada do presidente, com todas as armas, contra o isolamento social e contra os juízes do Supremo, os governadores e os prefeitos que o defendem, gerou mais de trinta pedidos de impeachment por crimes de responsabilidade. Por enquanto, nenhum deles foi examinado pelo presidente da Câmara, e adversário político de Bolsonaro, Rodrigo Maia, comprometido em concertar alianças e construir pontes que não façam ruir o governo, especialmente desde que o presidente começou a distribuir cargos públicos para acalmar os ânimos dos congressistas do Centrão.

Bolsonaro durante uma manifestaçao em Brasilia, abril de 2020. Reproduçao: Facebook

Além disso, o comportamento infame do presidente parece não ter afetado, até agora, a lealdade de cerca de 35% da população que continua a segui-lo e apoiá-lo tanto nos discursos quanto na prática de uma “quarentena relaxada”. É o núcleo duro do bolonarismo, que inclui os defensores da ditadura, uma fatia importante da comunidade evangélica e as classes média e alta tolerantes ao totalitarismo.

Para este núcleo, o presidente pode fazer qualquer coisa; mas apenas uma eles não aceitarão: o naufrágio da economia. É por isso que Bolsonaro teme o coronavírus; a conseqüência econômica da pandemia é a grande bomba-relógio que ameaça sua popularidade.

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* Jornalista da Radio Città Aperta de Roma

Fontes:

‘Aliança do Avestruz’: FT destaca grupo de Bolsonaro e outros líderes que ‘se recusam a levar coronavirus a sério’  https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52328505

Jair, der unerschütterlich Dumme: Brasiliens Präsident ist grad der gefährlichste Mann der Welt https://www.luzernerzeitung.ch/international/komm-nur-corona-wie-brasilien-und-andere-laender-mit-dem-virus-umgehen-ld.1205013

Ministro da Saúde nomeia advogado de milicianos como assessor especial https://catracalivre.com.br/cidadania/ministro-da-saude-nomeia-advogado-de-milicianos-como-assessor-especial/

Ministério da Saúde para de informar alguns dados do coronavírus nas redes sociais https://catracalivre.com.br/cidadania/ministerio-da-saude-para-de-informar-alguns-dados-do-coronavirus-nas-redes-sociais/

Suprema pandemia: o papel do STF na condução da crise do coronavírus https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/judiciario-e-sociedade/suprema-pandemia-o-papel-do-stf-na-conducao-da-crise-do-coronavirus-10042020

Em liminar, ministro Barroso proíbe campanha “O Brasil não pode parar”  https://www.conjur.com.br/2020-mar-31/liminar-barroso-proibe-campanha-brasil-nao-parar

A Covid-19, a política e o STF https://www.conjur.com.br/2020-abr-21/lunardi-covid-19-politica-stf

A boa notícia do Datafolha para Bolsonaro e a bomba-relógio que o ameaça https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/04/28/a-boa-noticia-do-datafolha-para-bolsonaro-e-a-bomba-relogio-que-o-ameaca.htm